M.

O relógio já marcava mais de 23 horas quando entrei pela porta do bar para mijar. Ao passar a entrada em arco me deparei com um senhor sentado em frente a um jukebox desligado. Com os braços cruzados na altura da cintura e com uma bolsa verde apoiada no colo, o homem sozinho olhava a um horizonte distante com um esboço de sorriso escondido no canto da boca.   
     
No trajeto entre o salão mal iluminado e os mictórios do boteco, perguntei-me: quem será esse homem? Segundos mais tarde puxei uma cadeira da mesa ao lado e me apresentei. O rapaz se identificou com graça que não me recordo agora, afinal a consciência já alterada me falta com a memória, mas sua idade não esqueci. M. tem 51 anos, mesma idade de meu pai, é catador de reciclagem.

Com instinto curioso fui logo me infiltrando no espaço privado de M. Ofereci uma bebida “o que você bebe? ”, perguntei.  M. recusa qualquer fermentado ou destilado, “álcool eu não bebo não”, mas aceita um refrigerante, “uma Coca eu aceito”. Continuou com os braços cruzados e, antes de beber, ele ofereceu um gole e logo serviu seu copo.

Ao ouvir minha pergunta sobre a família, M. não hesita e logo fala de seus três filhos, “tenho um de 23, outro de 21 e Davi tem 17 anos. Não os vejo há quatro anos”. Sem que eu precise fazer mais perguntas, M. toma controle da conversa e desembola: “A mãe deles ganhou uma herança, começou a sair com outros caras e logo me virou contra eles”.

Parece que o caminho de M. encontrou algumas pedras. Na juventude se envolveu com “essas coisas de amor” e parece que o amor não bastou. Disse que investiu vida e tempo, mas agora já andava sozinho. A mulher que amou hoje só o trazia “nojo”. Seja lá o que há por de trás da história, parece não ter deixado nada com ele.

M. contou que, semanas antes do nosso encontro, ao cruzar a Avenida Afonso Pena, no sentido que leva à Praça do Papa, encontrou com seu querido Davi. “Um violão nas costas, menino forte, bonito. Parece que tava no Papa com uns amigos, fazendo um som”. E explicou a surpresa: “De costas no meu carrinho ele me reconheceu. De longe gritou ‘ei, pai!’”.

Davi parece ser o único que não “evitava atender ligações” e queria muito “saber do pai”. M. confidenciou que esse era o filho que mais se parecia com ele: “Bonito. Mulherengo. Tava sempre com alguma menina”, mas “sabia das coisas”. M. queria saber mais dos filhos e contou que, ao se despedir, pediu ao filho: “quando quiser saber de pai, procura nesse bar aqui na Avenida Brasil, perto da Liberdade. Ou então na rua de cima, encontrei um canto em um posto de gasolina ali e fico ali mesmo” e acenou com a cabeça apontando para a avenida que segue ao norte .

Sorriu com satisfação, com o olhar ainda alto num horizonte distante, M. agradeceu pelo papo e pela “Coquinha”.

Eu agradeço, M. Sorte.


13 de julho de 2015. Skina, Av. Brasil com Bernardo Guimarães. 

O brasileiro político


            A cada biênio o tema “política” volta a fazer parte da rotina do brasileiro médio. Geralmente certo sentimento patriota toma o coração tupiniquim nos meses, semanas e dias que antecedem e seguem as eleições para prefeitos, vereadores, deputados, senadores e presidente. A discussão é travada à ferro e fogo, mas se dissipa no ar logo após o veredito das urnas.
            O ser humano é um ser político de nascença e por necessidade. A existência humana em sociedade exige o debate entre os valores trazidos de casa e aqueles que se encontra no espaço público. A política, através de mecanismos do Estado, faz a mediação de interesses comuns e privados a fim de garantir a sobrevivência em âmbito amplo e geral.
            A consciência de que é necessário ser um sujeito político parece tomar conta da sociedade civil somente nos momentos de debate ideológico direto que antecedem as eleições. Ao menos no Brasil o cidadão atrela a cidadania ao som estridente do botão verde que confirma “45” ou “13” no mês de outubro. Tal relação entre brasileiros e política revela o caráter imediatista com que a sociedade trata o ato de fazer política e até mesmo a suas necessidades pessoais.
            Ser político ao brasileiro é cada vez mais vencer um jogo de ideias e ideais. Sem flexibilidade ou pensamento progressista, eleitoras e eleitores vestem-se com armadura e escudo da razão, sobem ao campo de batalhas, e com espadas de preconceito junto a dados fantasiosos travam guerra sanguinária com um único objetivo: ser considerado  correto e sair como o vencedor dono da razão.
            Hoje a sociedade é composta por indivíduos que, mais do que o bem geral, querem fazer valer as suas ideias pessoais para salvar a humanidade da ditadura feminazi, gayzista, comunista, maconheira e abortista. As diferenças são tratadas com fundamentalismo essencial e aos poucos o ato político se esvazia de sentido: afinal, se não há possibilidade de se construir algo novo a partir do diferente, para que fazer política?
            Somos hoje sujeitos políticos somente para apertar teclas na urna. Dissociamo-nos da política a todo tempo por acreditarmos que não somos parte da festa da corrupção que acontece nas câmaras ao redor do país. Deixamos a política aos políticos e assim abdicamos da nossa cidadania caminhando no sentido oposto ao da democracia participativa.
            O sujeito humano é político mesmo quando opta por não o ser, porque a vida em sociedade exige isso. A sociedade é formada em conjunto, decide seus rumos em conjunto e sofre as consequências de suas escolhas também conjuntamente. Se é impossível não ser um sujeito político, portanto é também impossível não sermos considerados ao menos cúmplices das decisões tomadas pelas “autoridades políticas” da sociedade que nós mesmos sustentamos.
            Aceitar o papel de cidadão responsável pelo rumo da sociedade parece ser pesado ao brasileiro. Nossa sociedade mostra-se frustrada e cansada dos escândalos e descrente, por isso, em mudanças. A nossa concepção do futuro desanima qualquer ação que possa subverter esses próximos e iminentes passos. Por outro lado, resgatar a capacidade política através da cidadania – ao contrário do movimento “apolítico” que se vê ultimamente - talvez seja a chave para que grandes mudanças realmente impactantes aconteçam em nossa sociedade.

12 de Fevereiro de 2015